sexta-feira, 20 de maio de 2011

O Engano da Bondade

Endureçamos a bondade, amigos. Ela também é bondosa, a cutilada que faz saltar a roedura e os bichos: também é bondosa a chama nas selvas incendiadas para que os arados bondosos fendam a terra.


Endureçamos a nossa bondade, amigos. Já não há pusilânime de olhos aguados e palavras brandas, já não há cretino de intenção subterrânea e gesto condescendente que não leve a bondade, por vós outorgada, como uma porta fechada a toda a penetração do nosso exame. Reparai que necessitamos que se chamem bons aos de coração recto, e aos não flexíveis e submissos.

Reparai que a palavra se vai tornando acolhedora das mais vis cumplicidades, e confessai que a bondade das vossas palavras foi sempre - ou quase sempre - mentirosa. Alguma vez temos de deixar de mentir, porque, no fim de contas, só de nós dependemos, e mortificamo-nos constantemente a sós com a nossa falsidade, vivendo assim encerrados em nós próprios entre as paredes da nossa estuta estupidez.

Os bons serão os que mais depressa se libertarem desta mentira pavorosa e souberem dizer a sua bondade endurecida contra todo aquele que a merecer. Bondade que se move, não com alguém, mas contra alguém. Bondade que não agride nem lambe, mas que desentranha e luta porque é a própria arma da vida.

E, assim, só se chamarão bons os de coração recto, os não flexíveis, os insubmissos, os melhores. Reinvindicarão a bondade apodrecida por tanta baixeza, serão o braço da vida e os ricos de espírito. E deles, só deles, será o reino da terra.



Pablo Neruda, in "Nasci para Nascer"

OPORTUNISMO

O oportunismo é, porventura, a mais poderosa de todas as tentações; quem reflectiu sobre um problema e lhe encontrou solução é levado a querer realizá-la, mesmo que para isso se tenha de afastar um pouco de mais rígidas regras de moral; e a gravidade do perigo é tanto maior quanto é certo que se não é movido por um lado inferior do espírito, mas quase sempre pelo amor das grandes ideias, pela generosidade, pelo desejo de um grupo humano mais culto e mais feliz.


Por outra parte, é muito difícil lutar contra uma tendência que anda inerente ao homem, à sua pequenez, à sua fragilidade ante o universo e que rompe através dos raciocínios mais fortes e das almas mais bem apetrechadas: não damos ao futuro toda a extensão que ele realmente comporta, supomos que o progresso se detém amanhã e que é neste mesmo momento, embora transigindo, embora feridos de incoerência, que temos de lançar o grão à terra e de puxar o caule verde para que a planta se erga mais depressa.



Seria bom, no entanto, que pensássemos no reduzido valor que têm leis e reformas quando não respondem a uma necessidade íntima, quando não exprimem o que já andava, embora sob a forma de vago desejo, no espírito do povo; a criação do estado de alma aparece-nos assim como bem mais importante do que o articular dos decretos; e essa disposição não a consegue o oportunismo por mais elevadas e limpas que sejam as suas intenções: vincam-na e profundam-na os exemplos de resistência moral, a perfeita recusa de se render ao momento.

Depois, tempo virá na Humanidade - para isso trabalham os melhores - em que só hão-de brilhar os puros valores morais, em que todos se voltarão para os que não quiseram vencer, para os que sempre estacaram ante o meio que lhes pareceu menos lícito; eis a hora dos grandes; para ela desejaríamos que se guardassem, isentos de qualquer mancha de tempo, os que mais admiramos pela sua inteligência, pela sua compreensão do que é ser homem, os que mais destinados estavam a não se apresentarem diminuídos aos olhos do futuro.



Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'

NEM SEQUER SOU POEIRA

Não quero ser quem sou. A avara sorte

Quis-me oferecer o século dezassete,

O pó e a rotina de Castela,

As coisas repetidas, a manhã

Que, prometendo o hoje, dá a véspera,

A palestra do padre ou do barbeiro,

A solidão que o tempo vai deixando

E uma vaga sobrinha analfabeta.

Já sou entrado em anos. Uma página

Casual revelou-me vozes novas,

Amadis e Urganda, a perseguir-me.

Vendi as terras e comprei os livros

Que narram por inteiro essas empresas:

O Graal, que recolheu o sangue humano

Que o Filho derramou pra nos salvar,

Maomé e o seu ídolo de ouro,

Os ferros, as ameias, as bandeiras

E as operações e truques de magia.

Cavaleiros cristãos lá percorriam

Os reinos que há na terra, na vingança

Da ultrajada honra ou querendo impor

A justiça no fio de cada espada.

Queira Deus que um enviado restitua

Ao nosso tempo esse exercício nobre.

Os meus sonhos avistam-no. Senti-o

Na minha carne triste e solitária.

Seu nome ainda não sei. Mas eu, Quijano,

Serei o paladino. Serei sonho.

Nesta casa já velha há uma adarga

Antiga e uma folha de Toledo

E uma lança e os livros verdadeiros

Que ao meu braço prometem a vitória.

Ao meu braço? O meu rosto (que não vi)

Não projecta uma cara em nenhum espelho.

Nem sequer sou poeira. Sou um sonho



Jorge Luis Borges, in "História da Noite"

Tradução de Fernando Pinto do Amaral

NEM SEQUER SOU POERI