sexta-feira, 16 de abril de 2010

OS PONTOS DE MEU PAI

          Hoje ele esteve aqui; veio me visitar: olhou-me com desprezo como se sua visita fosse um favor, depois de tantos anos... Ofereci-lhe bebida, aceitou mas reclamou da qualidade – como sempre, pensei, não iria esperar um elogio, nunca havia saído de sua boca uma palavra mais aveludada, sorri, me calei- é um velho que não muda!


         Meu pai. Este senhor de aparência “tolerável” que vivia arrastado pelos corredores das repartições públicas abaixando a cabeça pra todo e qualquer que lhe dissesse toda e qualquer coisa- um trouxa eu pensava. Ele chegava em casa, e descontava seu ódio pelo serviço servil (que comodamente não largava) costurando minha boca...


         Eu o filho mais velho de boca costurada, noite após noite... e eu deixei.


        Tinha ódio, mas, tinha pena... deixava que me violentasse.


          Hoje ele esteve aqui, e eu não podia lhe dizer que eu lutava pra não repetir aquilo que ele tinha me feito, ( porque afinal, foi tudo o que vi) mas eu não podia... a minha boca havia sido costurada fazia muito tempo...


          E eu, bem, comodamente dei mais alguns pontos, pois pediam que eu o fizesse, e não tirei os que meu pai tinha me feito, afinal de contas estavam comigo fazia tanto tempo e além do mais foram marcados com uma crueldade tão esmerada que eu simplesmente não podia me desfazer deles...éra uma espécie de contrato, de coleção...de síndrome de Estocolmo.


         Foi embora, vi-o se afastando lentamente, tive vontade de correr atrás e gritar. Fechei a porta e fui pegar minha pequena caixinha de costura.

 
Samira






                       Goya - 1912 difteria


Nada para chocar,  - em arte: só sentidos... sinta, não entenda.



"Eu calço é 37 meu pai me dá 36 dói mais no dia seguinte, aperto meu pé outra vez, pai já to indo me embora, quero partir sem brigar ... já escolhi meu sapato que não vai mais me apertar..."

Raul Seixas – sapato 36 no Álbum: “ O dia em que a terra parou”-1977





desculpem estes dias... ando muito atarefada, beijos no coração de todos

3 comentários:

  1. Querida Samy,

    estava saudosa das suas partilhas sensíveis e inteligentes. O mergulho analítico na personalidade humana é profunda neste texto que relata tão bem um quadro que grita uma realidade. Bravo, Samy!

    Carinhoso beijo e lindo fim de semana.

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  2. "éra uma espécie de contrato, de coleção...de síndrome de Estocolmo.
    " síndromes ,idas e vindas ....coisas como nó nunca desfeito...gostei da sua prosa em poesia

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  3. tua cara tudo isso q to vendo!!!!!!!!!!!!!

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